segunda-feira, 9 de novembro de 2020

A BELEZA DA FESTA DO SHABAT (SÁBADO)

 


A BELEZA DA FESTA DO SHABAT (SÁBADO)

Quem já visitou a Terra Santa e por lá passou um dia de Shabat sabe como é profundo e
significativo este dia para o povo judeu, o povo da Bíblia.
Mas, quanta confusão e polêmica têm ocorrido em relação à observância e a guarda do
Sábado, desde a época de Jesus. Quantas doutrinas, seitas e divergências surgiram em decorrên-
cia deste tema. Afinal, tem o judeu razão quando observa o Sábado, o dia de descanso, como um
dos Dez Mandamentos do Senhor entregues a Moises no Monte Sinai? Pode um cristão, debaixo
da graça, não-judeu, guardar ou observar o Sábado? Se, sim, como guardar o shabat?
(Antes de responder essas perguntas, gostaria de ressaltar que minha intenção com este
artigo é simplesmente abordar o assunto dentro das Escrituras, de uma maneira imparcial, sem,
contudo, impor a ninguém uma doutrina para a guarda do sábado. Que o leitor abra o seu cora-
ção e julgue o texto abaixo, com amor).
Como veremos a seguir, Jesus e seus apóstolos judeus, bem como a Igreja gentílica
dos primeiros séculos guardavam o sábado conforme as Escrituras. Mas, por que então os
cristãos deixaram de obedecer a esse quarto mandamento?
Um pequeno resumo nós precisamos fazer para conhecermos um pouco dessa história.
- No ano 321 d.C., O imperador Constantino declara a “Venerabilis die Solis” (“O vene-
rável dia do Sol”). O sol era considerado como um deus. Até nos dias hoje, este dia – domingo –
é assim chamado de “dia do sol”, como Sunday em inglês, Sontag em alemão e em outras lín-
guas também possuem esse significado. Em português, optou-se pelo latim, “Dominus Dei”, ou
seja, Dia do Senhor;
- No ano 336 d.C., o Concílio de Laodicéia decreta a mudança do sábado para o domin-
go;
- No ano 386 d.C., Graciano, Valentiniano e Teodósio exigem que se façam negócios no
sábado;
-Em 416 d.C., o Papa Inocêncio publica que os cristãos deveriam guardar e jejuar no
domingo;
- Em 538 d.C., o Concílio de Orleans reforça a guarda do domingo;
- No 590d.C., finalmente, o Papa Gregório consolida por decreto a guarda do domingo e
discrimina todo aquele que continuasse guardando o sábado.

Daí pra frente, os cristãos gentios deixaram de vez de guardar o sábado.
Lutero, como ex-sacerdote católico, no século XVI continuou convicto na guarda do
domingo e, assim, até os dias de hoje, salvo pequenas exceções, o sábado é observado
no meio judaico-cristão.

O que diz a Bíblia sobre este dia?
Primeiramente, o que quer dizer a palavra Sábado na língua hebraica? A palavra “Sha-
bat”  significa, no hebraico, descansar, cessar. Como substantivo, quer dizer o dia da se-
mana chamado Sábado, sendo o sétimo dia. É interessante observar outras palavras no hebraico
que possuem a mesma raiz “sheb” ou “shab” , que no hebraico representa-se pelas letras
“shin”  e “bet”. Assim, a palavra “sheva” significa o número sete; “Shibim”, setenta;
“shebii”, “shevua” significa período de sete semanas ou Festa das sete semanas (Shavuot), ou
também conhecida como a Festa de Pentecostes.
O número sete, na Bíblia, aponta para algo que é perfeito, eterno, pleno, completo,
absoluto. Desta raiz advém, também, a palavra “shabá”, que significa jurar, conjurar.
É interessante, ainda, notar que na língua hebráica muitos antônimos são formados pelo
mesmo radical. Em minha opinião, dá a entender que possa ter havido um propósito divino em
chamar nossa atenção para o sentido oposto.
Assim, no hebraico, a palavra “shabar” significa comprar, adquirir, enquanto shabat
significa descansar, parar, cessar algo que se estava fazendo; justamente o contrário de comprar,
adquirir, trabalhar, verbos estes que denotam uma atividade dinâmica, e não de descanso, repou-
so.
Ainda, estudando a palavra “Shabat” no hebraico, gostaríamos de considerar, pe-
lo menos, treze boas razões pelas quais todos podem celebrar o Shabat segundo a própria Bíblia:
Em primeiro lugar, no Livro de Genesis, versículo 3 do capítulo 2, diz o próprio D´us:
“Abençoou D’us o sétimo dia, e o santificou; porque nele descansou de toda a obra que
criara e fizera...” Deste versículo, aprendemos que o shabat é um dia abençoado. Ou seja, a-
bençoar na língua hebraica significa conceder autoridade e poder para que alguém seja bem
sucedido e próspero, fecundo e fértil. Então, o shabat é um dia no qual recebemos esta bênção
do próprio D’us;
Segundo, é um dia santificado, ou seja, separado dos demais dias. Isto é, ele não foi
feito para ser igual à segunda, terça ou quarta-feira, etc. A lembrança e o objetivo central, quan-
do lermos todos os versículos que mencionam o shabat, é buscar e refletir a própria santidade de
D’us. Afinal, fomos criados a Sua imagem e semelhança. Com isto, estamos proclamando, indi-
retamente, que reconhecemos pela fé que não viemos da evolução de um chipanzé, mas, fomos
criados por D’us, sendo superior a todos os demais animais e, por isso, reconhecemos o shabat
como o dia do descanso de obras e seres que foram criados por D’us;
Terceiro, é também um dia de descanso. Sabemos, pelas Escrituras, que o homem é
constituído de um espírito, alma e corpo. Após seis dias de trabalho, é lógico e claro que todos
nós que trabalhamos estamos exaustos. Quer do trabalho que exige mais do corpo e dos múscu-
los ou daquele tipo de trabalho que exige mais da alma (mente, raciocínio, memória) ou até
mesmo daquele outro tipo que requer mais adrenalina e tensão, como um piloto de avião ou um
controlador de vôo, ou mesmo, daquele estresse de um analista do mercado financeiro. Assim,
D’us reservou um dia para este descanso pleno (qualidade de vida), no qual abstraimo-nos das
atividades profissionais e nos concentramos na Palavra de D’us, que nos alimenta o Espírito.
Pois, pelo espírito tomamos consciência de D’us, pela alma do mundo psicológico e pelo corpo
do mundo material. Como uma bateria de celular que necessita de ser de tempo em tempo recar-
regada, o homem precisa ser “recarregado” do Espírito de D’us. Quanta ansiedade, estresse e
cansaços poderiam ser evitados se tirássemos um dia de descanso na semana? Para esse descan-
so, D’us incluiu até os animais domésticos, a fim de se beneficiarem dessa bênção, que zelo!
Quarto, Yeshua, Jesus, é o Senhor do Shabat, diz o evangelista Mateus:
“... Porque o filho do Homem até do shabat é Senhor...”(Mt12:8)
No livro de Marcos, Yeshua diz: ...”O sábado foi feito por causa do homem e não o
homem por causa do sábado...” (Marcos 2:27-28). Só este motivo, Jesus, o Senhor do Shabat,
já seria para nós um bom exemplo. Ou seja, seguimos Aquele que é dono e que também guarda-
va o shabat em obediência ao seu Pai. Jesus ensinava e corrigia o povo judeu quanto a maneira
correta de guardar este dia com boa ação e alegria, abolindo todo e qualquer tipo de legalismo,
tradicionalismo e má interpretação que alguns fariseus tinham ou faziam neste dia. Shabat não é
para ser peso para o homem, uma proibição, mas uma revelação profunda da fé e do zelo para
com as coisas do Nosso Pai, Nosso Rei, Avinu malkeinu.
Quinto, É um memorial da criação divina. Neste dia de shabat exercitamos a nossa
fé, pois cremos que D’us nos criou para obedecermos seus mandamentos. Assim, o sábado,
segundo as Escrituras, é um memorial de toda a obra que D’us fizera. Isto é muito e muito lógi-
co. Assim, o sábado fala do passado, do presente, e fala também do futuro, como veremos a
seguir. Ele fala da Redenção Universal que virá, o “Tikun Olam”, como diz a bíblia. D’us quer
que entendamos este tempo Dele, pois o tempo é para nós. Ele não precisa de um tempo para a
redenção de todas as coisas. Ele já determinou tudo e está no controle e soberania de todas as
coisas.
Em Êxodo 16:26-30, vemos mais detalhes do que relatamos até aqui, quando D’us envi-
ava uma porção dobrada do pão (maná) no sexto dia, para que o homem ficasse isento de reco-
lher alimento no shabat e tivesse tempo de culto e adoração para Ele;
Sexto, o shabat é o quarto mandamento (mitzvá) do decálogo dado por D’us. Manda-
mento é algo muito sério, pois a lei de D’us apresenta-se sob a forma de mandamentos (mitz-
vot), estatutos (huquim) e ordenanças (mishpatim). Mandamento é algo que vem de D´us para o
homem, e este o obedecendo, o devolve a D´us.
Notemos que na língua hebraica há uma distinção bem diferenciada destas palavras e
que elas não são meros sinônimos. Dessa forma, enquanto o dízimo ou as festas bíblicas ou as
regras alimentares estão na classificação de estatutos; as leis indenizatórias e trabalhistas são
exemplos de ordenanças ou preceitos. Já o shabat está no contexto de um mandamento. Sempre
há uma conseqüência quando falhamos com os mandamentos de D’us. Basta pensar um pouco
nas pesadas conseqüências de quem mata, furta, adultera, etc. Isto também acontece para os
estatutos e ordenanças, pois geram conseqüências pelo descumprimento, porém, bem mais
brandas. Ou seja, deixamos simplesmente de receber as bênçãos que D’us tem para todo aquele
que obedece e cumpre a Palavra Dele;
Sétimo, o Shabat é o dia de a família estar reunida. Analisando o quarto mandamen-
to, vemos: “...Lembra-te do dia do sábado para o santificar... Neste dia não fareis trabalho
algum, nem teu filho, nem tua filha, nem teu servo, nem teu animal, nem o estrangei-
ro..”.(Ex20:8-11). Estes versículos nos mostram que D’us quer toda a família reunida. Por isso,
dizemos que o shabat também é o dia da família e daqueles que estão ao nosso redor. Com cer-
teza, se toda família pudesse ter um dia reunião, comendo juntos à mesa, estaria muito melhor
em termos de amor, bom relacionamento e união;
Oitavo, sábado é um sinal de D’us para com a Casa de Israel. Observemos o que diz o
versículo abaixo: “...Certamente guardareis os meus sábados; porquanto isto é um sinal entre
Mim e vós pelas vossas gerações... Porque eu sou o Senhor que vos santifica...”( Ex 31:13).
Vejam que tomar o shabat como um sinal só é válido para o povo judeu e não para o gentio
crente. Mas, como o gentio crente em Cristo foi enxertado na “Oliveira” que é o Israel espiritual
(judeus e gentios crentes em Jesus), este também tem o direito à esta bênção.
Há aqui outro detalhe de suma importância. Em vários versículos da Bíblia que fazem
menção ao sábado é usado o verbo “Shemar” no sentido de guardar, obedecendo este manda-
mento do shabat, referindo-se aos filhos de Israel, ou seja, é um mandamento dado ao povo
hebreu, como já dito. Por exemplo, temos o versículo citado acima. Mas, no decálogo, que foi
dado também para toda humanidade, D’us emprega o verbo “Zacor”, que quer dizer “Lembrar-
se”. Assim, podemos dizer que D’us quer a humanidade se lembrando do sábado, santificando-
o e descansando nele. Mas, para o povo de Israel, além destes princípios, D’us quer que o sába-
do seja um SINAL do pacto eterno entre o povo hebreu e o próprio D’us. Lembremo-nos que,
por Cristo, os gentios foram enxertados neste Pacto;
Nono, o Shabat é um dia festa e alegria. Isto mesmo, um dia de festa! Em Levítico
23:2-3, temos o shabat como uma festa semanal, porém, uma convocação solene. Portanto, é
uma festa de alegria e, por isso, não se jejua no sábado (salvo exceções). Se temos um dia dedi-
cado para adorar, louvar e estudar a santa Palavra do Senhor, não pode haver espaço para ne-
nhuma tristeza. Claro que isto não invalida que D’us seja adorado em qualquer outro dia da
semana, mas, no sábado, temos uma festa;
Décimo, Yeshua, como bom judeu, zeloso para com a lei, guardava o Shabat estudan-
do as porções da Torá e os livros do Profeta (Parashá e Haftará).
Em Lucas 4:16-17 “... Chegando a Nazaré onde fora criado, entrou na sinagoga no dia
de sábado, segundo o seu costume, e levantou-se para ler ( a Torá e a Haftará). Foi-lhe entre-
gue o livro do profeta Isaías achou o lugar onde estava escrito: O Espírito do Senhor está sobre
mim, porquanto me ungiu para anunciar as boas novas aos pobres...” ( Isaias 61:1)- Pela antiga
tradição judaica, bem antes de Yeshua, os judeus, a cada sábado, reuniam-se nas sinagogas para
estudar a Parashiot (as porções da Torá) e as Haftarot (os textos dos profetas);
Décimo-primeiro motivo pelo qual guardamos o shabat é que os apóstolos e discípu-
los de Yeshua, judeus e não judeus, guardavam e estudavam a Torá e a Haftará também, e
isto durou até o século VI d.C., quando o Papa católico Gregório aboliu de vez o shabat, trocan-
do-o pelo domingo (“Dominus Dei”), “dia do Senhor”. Longos foram os anos para que se tiras-
sem e abolissem a guarda do shabat do meio dos cristãos dos primeiros séculos.
Vejamos, como exemplo, só dois textos de Atos dos Apóstolos. Paulo, estando em An-
tioquia “... entrou numa sinagoga, no dia de sábado, sentaram-se. Depois de ler a Lei (Torá) e
os Profetas (Haftarot), os chefes da sinagoga...” (At 13:14) “... quando foram saindo rogavam
para que estas palavras fossem repetidas no sábado seguinte... No sábado seguinte reuniu-se
quase toda a cidade... (At 13:42 e 44). Portanto, era costume da igreja primitiva guardar o sába-
do para estudar a Palavra de D’us, a Torá.
Vejamos agora outro texto de Atos, onde judeus e não judeus guardavam o shabat para
estudar a palavra. Paulo estava em Corinto na Grécia “... ele discutia todos os sábados na sina-
goga e persuadia a judeus e gregos...”( Atos 18:4)
Aqui temos claramente judeus e gregos (gentios crentes) praticando a guarda do shabat;
Décimo-Segundo motivo para a guarda e observância do Shabat é, para mim, uns dos
grandes motivos, pois obedecer a guarda do shabat é um ATO PROFÉTICO, ou seja, um ato
de fé, uma alusão ao reino milenar, o reino onde Yeshua, juntamente com judeus e gentios sal-
vos, estarão reinando com o Rei dos reis. A palavra“ato profético” em si significa fazer algo por
fé, simbolizando ou gerando a existência de algo. Por exemplo, quando fazemos a ceia com pão
e vinho, estamos, segundo o apostolo Paulo, dizendo que Yeshua morreu, ressuscitou e que Ele
voltará. Ou seja, esta cerimônia é um bom exemplo do que é um ato de fé. Outro bom exemplo
é a celebração das festas bíblicas, pois se extrairmos delas a fé, as mesmas não teriam sentido
algum para nós e não passariam de um simples memorial. O Texto de Hebreus diz: “... Portan-
to, resta ainda um repouso shabático para o povo de D’us...” (Hb 4:9). O contexto fala do des-
canso, do reino de D’us chegado à terra por meio da segunda vinda do Messias Yeshua. O livro
de Apocalipse (19:7 e 20:6) fala deste milênio e deste reino. O autor de Hebreus ainda nos exor-
ta a nos esforçarmos para entrar neste descanso (shabat) do Senhor.
Se compararmos o shabat com a Lei do dízimo (um estatuto), veremos que o dízimo a-
parece em todo o Antigo Testamento, mas não está ordenado ou endossado no Novo Testamen-
to como Lei, mas, simplesmente, como bênção para quem for fiel e obediente a este bom e efi-
caz estatuto. É um ato de amor. O dízimo é um estatuto judaico muito bem entendido pelos
crentes em Jesus e tal entendimento é muito bom. Mas, se analisarmos bem o mandamento
(Mitzvá) do shabat, veremos que o Shabat nos foi dado anteriormente à Lei, durante o período
da Lei, após a Lei (Isaias 56 é um bom exemplo dos estrangeiros entre os judeus guardando o
shabat e recebendo bênçãos) e, mais importante ainda, no Novo Testamento, onde há mais cita-
ções sobre o shabat do que o Antigo; o que nos prova a confirmação do propósito de D’us para
que todos nós cresçamos em fé e em verdade, profetizando juntos “Os dias vindouros” (Acharit
Haamim), quando todos os eleitos estaremos na presença do Senhor.
Décimo-Terceiro motivo. Eu poderia dizer que pelo fato de Jesus ter ressuscitado no
domingo, no primeiro dia da semana, não é argumento válido para anular mais de centenas de
citações que a bíblia menciona sobre o shabat. Yeshua não poderia ressuscitar, como judeu, num
dia sábado, de descanso absoluto para os judeus. Ninguém saía de suas casas. Assim, Yeshua foi
obediente até nisso, quando ressurgiu no primeiro dia da semana. Seria muito estranho um filho
tão obediente, com a mesma natureza divina, mudar um mandamento ou qualquer outro ordena-
do por Seu Pai. Não seria?
Que cada um de nós crentes em Jesus, judeus ou não, possamos ter um entendimento
mais pleno e completo do dia do Senhor, não com legalismos, proibições ou por tradições, mas
por revelação. Quem não tem a revelação do shabat, não merece as bênçãos do shabat, dizem os
sábios estudiosos da bíblia.
Que cada um possa receber com amor este ensinamento bíblico que foi tirado do nosso
meio por decreto, mas que ele volte rápido, mas não por meio de outro decreto humano, mas
sim, como revelação e amor do que ele representa: a história passada, presente e futura da re-
denção total do homem e a chegada do Messias e do Reino de D’us. É disso tudo que fala o
Shabat.
(*) Marcelo M. Guimarães é engenheiro industrial, Teólogo, Rabino Messiânico orde-
nado pelo Instituto bíblico Netivyah de Jerusalém-Israel. Fundador e presidente do Ministério
Ensinando de Sião e da Congregação Har Tzion em Belo Horizonte-MG-
www.ensinandodesiao.org.br e Sião@ensinandodesiao.org.br

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Paulo e as Obras da Lei

Paulo e as Obras da Lei

 Paulo e as Obras da Lei

Em algumas ocasiões nos escritos da Nova Aliança o apóstolo Paulo utiliza a expressão “obras da lei” (carta aos Romanos cap. 03 e aos Gálatas cap. 02 e 03). Em todas essas citações a expressão é usada negativamente, sendo algo a ser evitado por todo servo verdadeiro de Deus através de Yeshua (Jesus). Porém, a má interpretação e a descontextualização dos textos paulinos onde essa expressão é mencionada, gerou e tem gerado nos meios teológicos cristãos (e também judaicos) um falso conceito que Paulo era contrário à Torá e a sua obediência. Tal conceito errôneo gerou na teologia cristã uma pré-concepção ANTINOMISTA (anti-Lei ou anti-Torá) e também ANTISSEMITA, onde todos os textos neo-testamentários são interpretados partindo-se desse pressuposto. Não só isso, mas o meio judaico tradicional aceitou do cristianismo a percepção e interpretação do fariseu Shaul (Paulo), gerando também no judaísmo o falso conceito que Paulo foi contra a Torá e a guarda dos mandamentos. Além disso, uma grande confusão surge quando confrontamos a interpretação cristã clássica de Paulo em relação à Lei de Moisés, com alguns de seus ensinamentos sobre a Lei, tais como Rm 7:12-14, e outros. Como ele pode dizer que a Lei é santa, espiritual e boa, e em outras passagens se referir a ela como “maldição”? Teria ele se rebelado contra seu mestre e salvador (Yeshua), ao afirmar que a lei foi abolida? (Pois Yeshua foi claro ao afirmar que: “não vim ABOLIR a Lei ou os profetas. Vim torná-los plenos! – Mt 5:17). Teria sido o apóstolo Paulo acometido por algum tipo de esquizofrenia ou bipolaridade? Certamente que não! O problema não está em Paulo, mas sim, na forma de se LER Paulo.

A expressão “Obras da Lei” é mais antiga do que o próprio Paulo. Ela já foi utilizada pela comunidade de Qumran quase dois séculos antes de Cristo, como atestam os pergaminhos do Mar Morto descobertos no século passado. Em um dos rolos temos o título “Mikssát Maassêi ha Torá“, ou  “As importantes obras da Lei”. Devido a este nome, esse pergaminho é simplesmente conhecido como “MMT ou 4QMMT”. Nele, há mais de 20 regras haláchquicas sobre purificação, incluindo citações de mandamentos da Torá e principalmente INTERPRETAÇÕES e COMPLEMENTOS de tais mandamentos Mosaicos. Há também regras que excluíam as oferendas dos gentios e os próprios gentios de participarem das atividades do Templo em Jerusalém. O estudo deste documento trouxe grande luz à interpretação do Apóstolo Paulo e seu posicionamento em relação à Torá ou Lei de Moisés.

Fragmento do pergaminho 4QMMT

 
Fragmento do pergaminho 4QMMT, também chamado de “Importantes Obras da Lei” – Qumran – Israel, séc. II a.C.

Baseados no testemunho do próprio Paulo e em alguns de seus discursos de defesa, sabemos que ele não era contra os mandamentos da Torá. Os próprios apóstolos, em Jerusalém, dão um testemunho sólido e irrefutável da conduta de Paulo em relação à Lei de Moisés: “…e saberão todos que não é verdade o que se diz a teu respeito (que pregas contra a Lei) e que, pelo contrário, andas também, tu mesmo, GUARDANDO a lei.”(At 21:24). Já que Paulo não era contra a Torá, como ele poderia ser contra as “Obras da Torá”? Bem, com a leitura do antigo documento judaico da seita do Mar Morto e interpretando os ensinos de Paulo em seu contexto original, concluímos que Paulo não era contra a Torá ou a obediência a ela, mas sim, contra as INTERPOLAÇÕES E INTERPRETAÇÕES legalísticas que eram contrários à própria Torá (os quais são descritos no documento “Mikssat Maassêi ha Torá“). Ao usar a expressão “Obras da Lei”, Paulo refere-se a uma ideologia muito comum entre judeus e gentios simpatizantes do judaísmo, a saber, que a simples obediência ao mandamento justificaria o praticante perante Deus. Isso é também chamado de “legalismo”. O legalismo é a desobediência a Deus utilizando-se para isso a própria Torá.

A guarda do mandamento, sem a Fé e o coração circunciso, não beneficia em nada ao homem. Pelo contrário, afasta o homem de Deus ao passar a falsa ideia que a simples guarda do mandamento (sem a correta kavaná – intenção do coração e fé) justifica o praticante. Esse é o conteúdo da exortação divina através do profeta Isaías:

“De que me serve a mim a multidão de vossos sacrifícios? — diz o SENHOR. Estou farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de animais cevados e não me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodes.(…) Não continueis a trazer ofertas vãs; o incenso é para mim abominação, e também as Festas da Lua Nova, os sábados, e a convocação das congregações; não posso suportar INIQUIDADE associada ao ajuntamento solene. (…) Pelo que, quando estendeis as mãos, escondo de vós os olhos; sim, quando multiplicais as vossas orações, não as ouço, porque as vossas mãos estão cheias de sangue. Lavai-vos, purificai-vos, tirai a maldade de vossos atos de diante dos meus olhos; cessai de fazer o mal. Aprendei a fazer o bem; atendei à justiça, repreendei ao opressor; defendei o direito do órfão, pleiteai a causa das viúvas.” (Is 1:11-17).

Nota-se que Deus não está sendo contrário a tais mandamentos, pois Ele mesmo os deu ao povo como ESTATUTO PERPÉTUO, sendo mandamentos para a VIDA. (Dt 30:19-20). Porém, apenas a prática de tais preceitos sem a busca por um coração circuncidado e com sede de justiça, faz com que tal obediência não seja recebida por Deus. Na verdade, tal prática é prejudicial ao homem. É isso que o próprio Paulo quer dizer quando usa a expressão “LETRA”, referindo-se à cega obediência da Torá sem um estado interior e exterior  condizentes“…o qual nos habilitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito; porque a letra mata, mas o espírito vivifica”. (2 Co 3:6). Assim, contrariando a interpretação normativa cristã dessa passagem, Paulo não estava atestando que a Torá “mata” (pois estaria condenando a si mesmo), mas sim, que a FORMA como a Torá é guardada e interpretada é que pode roubar a vida do homem.

Portanto, a mesma Torá (Lei) que é benção para uns, pode ser maldição para outros:  “E o mandamento que me fora para vida, verifiquei que este mesmo se me tornou para morte” (Rm 7:10). Paulo aqui atesta que já fora escravo da LETRA e das “OBRAS DA LEI”, pois sua busca pela pureza da religião e zelo pelas tradições endureceram-lhe e cegaram-lhe o coração, impedindo-o discernir o Messias contido na própria Torá. Na verdade, a aceitação ou não da obediência do homem em relação à Lei de Deus dependerá da fé e do estado do coração do ofertante (Rm 2:28-29). A fé SEMPRE DEVE VIR ANTES do mandamento, e não o contrário (Rm 4:9-15). É como eu sempre digo: “Não obedeço para ser SALVO, obedeço pois SOU salvo.” Essa frase expressa o contraste de MOTIVAÇÃO ao se obedecer a Deus.

No pergaminho MMT do Mar Morto, são ordenados exclusivamente os mandamentos e interpretações de mandamentos sem nenhuma ênfase à mudança de atitude ou de um coração correto diante de Deus. Além disso, são declaradas “halachôt” (dogmas) que humilhavam os gentios e os afastavam do templo (como o tal ‘muro da separação’ que Paulo se refere em Ef 2:14). A essa “falsa obediência” e aos dogmas que afastavam os gentios do Reino de Deus, Paulo deu o nome de “OBRAS DA LEI” ou simplesmente “LETRA”.

Paulo não poderia ser contra a obediência a Torá, pois usou seu próprio testemunho para atestar o contrário (At 24:14, 25:8). Ele também atesta que a Lei é espiritual e boa, e o mandamento, santo, justo e bom (Rm 7:12-14). Não é a Torá o problema, mas sim, o LUGAR onde a mesma está escrita. Na chamada NOVA ALIANÇA, Deus utiliza a obra de Seu ungido para escrever a LEI (Torá) no coração do Seu povo (Jr 31:31). Assim, todo servo do Deus de Israel e discípulo de Yeshua deve fazer a si mesmo a seguinte pergunta: Onde está a Lei de Deus na minha vida? Ou ela ainda está em pedras, longe e externa à minha natureza, ou está escrita em meu coração, sendo parte da minha natureza. Quem tem ouvidos… ouça!

Autor: Matheus Zandona Guimarães

Matheus Zandona Guimarães é descendente de Judeus com origem na Itália e em Portugal. Graduado em Comunicação Social, estudou teologia com ênfase em Estudos Judaicos nos EUA e Hebraico e Cultura Judaica em Jerusalém - Israel. É o atual presidente do Ministério Ensinando de Sião e rabino da Sinagoga Har Tzion em Belo Horizonte. É diretor internacional do Netivyah Bible Instruction Ministry (ISRAEL) e diretor regional da UMJC (Union of Messianic Jewish Congregations) - EUA. Matheus é casado com Tatiane e tem dois lindos filhos, Daniel e Benjamin. (facebook.com/mzandonna, @matheus.zandonna)

Palavra de Hoje 02/02/21, Edificando o próximo! , 20 de shevat de 5781

  Palavra de Hoje, Edificando o próximo! Terça, 02 de fevereiro de 2021, 20 de shevat de 5781 Romanos 15:2 Cada um de nós deve agradar...